22 junho 2011

Aviso aos ladroes e a quem deveria impedir o furto


Não é só reconhecer os erros, filho. É mais. Tem de devolver o dinheiro que furtaram, disse-me o padre Antônio Vieira, na madrugada fria da última sexta feira de junho,  em Porto Alegre, onde as estátuas nas praças espirravam de frio.


Com fastio de ouvir as ladainhas dos corruptos meia-tigela, que nem a roubar direito aprenderam, jogando notebooks pelos ares em queda livre, quase ia - só por hoje - recolhendo-me mais cedo.

Foi, quando, então, lembrei-me do homem a quem faltava tempo para ser breve.

O padre Antônio Vieira, dele se diz que um só zunido de inseto já era demasiado barulho, percebido no silêncio das multidões que o ouviam quase hipnotizadas.

Calavam-se todas as bocas e punham-se em sentinela todos os ouvidos para escutar o padre da retórica de fogo. Foi o maior orador do Brasil, as palavras saindo de sua boca numa   explosão, para entrar nos ouvidos transformadas numa sinfonia ao bom entendimento. Cada dizer no seu lugar, metáforas abundantes, citações e tropos perfeitos.

Fernando Pessoa o chamou de "imperador da língua portuguesa". Falava com a autoridade de um profeta.
Roguei-lhe, insone, que me concedesse fazer duas ou três perguntas urgentes, pois para elas não encontrei respostas nem no Supremo Judiciário, quem dirá das bocas dos dos escalões inferiores

Eis as indagações e as respostas de Antônio Vieira:


Blog - Padre, o rei que não rouba e não sabe que sua corte graduada rouba, estará salvo? Ou merece a danação?
Antônio Vieira: Merece. Declarado assim por palavras não minhas, senão de muitos bons autores, quão honrado e autorizados sejam os ladrões, estes são os que disse, e levam consigo os reis ao inferno. Primeiro, porque o rei lhes dá ofícios e poderes, com que roubam; em segundo, porque o rei os conserva neles.


Blog - Reverendo, insisto: se o rei não roubou, nem sabia que roubavam, quem fica obrigado a restituir aos cofres públicos o dinheiro pilhado?
Antônio Vieira: O rei. É o rei obrigado, sob pena de danação, a restituir todos esses furtos. E quem diz isso? Já se sabe que há de ser São Tomás de Aquino. Pergunta São Tomás se a pessoa que não furtou, nem recebeu, ou possui coisa alguma do furto, pode ter obrigação de restituir. E não só afirma que sim, mas, para maior expressão do que vou dizendo, põe o exemplo nos reis. Aquele que tem obrigação de impedir que não se furte, se não o impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. Não se perdoa o pecado sem se restituir o roubado.


Blog- Não duvidando jamais de sua palavra, mas a condenação do rei que diz que não sabia de nada, isso não seria uma injustiça? Ele deve pagar pelos crimes dos outros?
Antônio Vieira: Até os príncipes, que por sua culpa deixam crescer ladrões na rua, são obrigados à restituição, porque as rendas com que os povos os servem são como estipêndios consignados por eles para que os guardem e os mantenham em justiça. E se nessa obrigação incorrem os príncipes, pelos furtos que cometem os ladrões casuais e involuntários, muito mais serão eles responsáveis pelos ladrões que eles mesmos, por sua própria escolha, armaram de poderes com que roubam os povos.
Blog - Padre, por último, aqui uma mulher furtou um pote de manteiga e foi mantida presa; o juiz negou-lhe habeas corpus. E os suspeitos de furtos do dinheiro público estão livres e ganham tantos habeas corpus como as crianças ganham presentes no Natal. Serão condenados?
Antônio Vieira: Tem paciência e ouve. Suponho, finalmente, que os ladrões de que falas não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza os condenou a este gênero de vida, porque a própria miséria alivia o seu pecado, como diz Salomão: "Não é grande a culpa, quando alguém furta, se furta para matar a fome". O ladrão que furta para comer não vai nem leva para o inferno. Os que não só vão, mas também levam, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera. Os ladrões que mais própria e dignamente merecem esse título são aqueles a quem os reis encomendam o governo da província ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Porque os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados. Estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de ministros levavam para enforcar uns ladrões de rua, e começou a bradar: "Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos".


E nada mais disse nem lhe foi perguntado.

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