Marcas Do Que Se Foi

Os neuroticos vivem de reminiscencias - afirmou o velho Freud. Ignorando ser ou nao um neurotico, fato eh que as reminiscencias me aprazem. E la vou eu atras delas, pulando de galho em galho, ao acaso. Vem-me, num relance de memoria, uma antiga escola, onde estudavam ginasianas de blusas vermelhas e saias pretas. Na blusa, uma aguia bordada em branco parecia abrir as asas para ganhar as nuvens, elevando junto o Instituto Auxiliadora, o nome da doce escola.

Eram as manhas ensolaradas daquele alvorecer dos anos 70. Na radio Rio Pardo, um disco de vinil rodopiava com aquele balanço que parecia dançar ao ritmo de Os Incriveis, cantando Eu Te Amo Meu Brasil, de Don e Ravel. Ah! Don e Ravel, que agora dormem profundamente, no dizer do poeta-maior Manuel Bandeira, referindo-se aos que ja tomaram o ultimo trem no rumo do infinito. Don e Ravel nos exortavam a compartilhar o abc com os compatriotas desafortunados: Voce tambem eh responsavel. Entao me ensine a escrever. Eu tenho a minha mao domavel. Anseio a luz do saber. E por falar no poeta-maior, vem-me num atimo uma outra formosura do passado: as crianças, naquelas primicias dos anos 70, brincavam na escola de trenzinho, que era o modo como as professoras nos introduziam a conhecer os tesouros da poesia, e la se iam por trilhos imaginarios declamando: Cafe com pao, cafe com pao, cafe com pao...Virgem  Maria, que foi isso Maquinista! Agora sim, cafe com pao.

Yes, I do remember. A radio Rio Pardo tinha dois locutores: Pericles e Pedro, e o hit que tocava nas aberturas dos programas era O Milionario, na voz dos Incriveis.

- Faz tempo bom! - anunciou Pedro ao microfone.

Do lado oposto da vidraça, Pericles, sabendo  que desandava uma tromba de agua, fazia mimicas para o colega, tombando sobre a cabeça varias vezes os dedos. 

- Faz tempo bom para os agricultores, com toda essa chuvarada! - emendou-se Pedro. 


Onde anda o seu Antonio, o dono de um carro de praça DKW, cujo ponto ficava ao lado da escola Auxiliadora, que gentilmente me dava umas caronas, naqueles dias congelantes sob chuva...Ainda andara com passos nonagenarios, neste mundo de provaçoes,  ou ja dorme profundamente...

Nas ruas, os dodge darts e galaxies luxuosos cruzavam com gordinis, variants, opalas e o sempiterno fusca.   

As vezes, especulo porque o Criador do tempo permitiu-nos conhecer tao bem o passado, mas nada nos deu a saber das coisas do porvir. Uma de minhas provisorias conclusoes eh nao quis Ele que sentissemos o desespero da certeza de nosso ultimo dia - ou ainda pior: do ultimo dia de nossos amados.  Pois este conhecimento nos deixaria paralisados. Jamais saberemos quando embarcamos num aviao que cai, quando a violencia nos arrebatara em um lugar qualquer ou quando uma montanha desaba sobre nos. Jamais! Apenas aos profetas foi dado antever os acontecimentos, dom de que se lamentavam muito Aquele que lhes concedeu.  

O presente dura o tempo de um relampago, esvai-se a cada fraçao de segundo e torna-se passado.  Somos o que somos pelo nosso passado. Somos o que ja fomos. Parece que apenas o passado concede-nos a identidade. Passado, contudo, que por vezes traz a saudade, uma dor na alma, que pode ate abreviar a existencia.

Razao tinham os Novos Baianos: Ai, ai, saudade! Nao venha me matar!